Transição energética para quem? Os riscos de uma nova exclusão social verde – por José Guilherme Schutzer

A transição energética, impulsionada pela urgência da descarbonização, tem ocupado o centro dos debates climáticos globais. Essa discussão ocorre em diversas frentes – políticas, econômicas, sociais e técnicas – e envolve múltiplos atores: governos, empresas, organizações internacionais, comunidades e sociedade civil. 

Vista como essencial para atingir as metas do Acordo de Paris, a transição energética implica a substituição de fontes fósseis (carvão, petróleo e gás) por fontes renováveis (solar, eólica, hídrica, biomassa), além de investimentos em eficiência energética, eletrificação e novas tecnologias (como o hidrogênio verde e baterias de longa duração), na perspectiva de limitar o aquecimento global a 1,5°C.

No entanto, sob a superfície de soluções tecnológicas e metas de neutralidade de carbono, emerge uma pergunta fundamental: quem se beneficia dessa transição — e quem é deixado para trás? Essa é uma questão estratégica e ética que precisa ser colocada no centro das políticas públicas e dos projetos de infraestrutura energética.


O Paradoxo da Sustentabilidade: verde, mas desigual

Embora a substituição de fontes fósseis por renováveis seja vital para mitigar as mudanças climáticas, a forma como essa transição tem sido conduzida levanta preocupações sérias. Parques eólicos, usinas solares, hidrelétricas de “baixo carbono” e outras infraestruturas verdes têm se expandido em ritmo acelerado, muitas vezes em territórios vulneráveis — áreas indígenas, quilombolas, periferias urbanas ou zonas rurais marginalizadas, ou de populações tradicionais. Nestes locais, grandes empreendimentos são implementados com pouca ou nenhuma escuta das comunidades afetadas, reproduzindo lógicas de expropriação e invisibilização historicamente associadas ao extrativismo, em que os benefícios são exportados, enquanto os impactos ficam.

Ao priorizar metas técnicas e mercadológicas de “transição limpa”, sem considerar dimensões sociais e territoriais, o risco é construir uma transição que seja verde no discurso, mas injusta na prática — gerando uma nova camada de exclusão: a exclusão social verde.


Racismo ambiental e injustiça energética

Esse processo tem sido analisado por autores do campo da justiça ambiental como uma manifestação contemporânea do racismo ambiental: comunidades historicamente marginalizadas são mais uma vez empurradas para as zonas de sacrifício, agora em nome da sustentabilidade. Ao mesmo tempo, os benefícios da energia limpa — como acesso confiável, tarifas reduzidas ou participação nos lucros — raramente chegam às populações locais.

Isso revela um quadro de injustiça energética, no qual o direito à energia renovável não é tratado como um bem comum, mas como uma mercadoria concentrada nas mãos de grandes corporações. A lógica da “transição de cima para baixo” corre o risco de perpetuar desigualdades estruturais, em vez de enfrentá-las.


A urgência de uma transição energética justa

Para evitar que a transição energética se torne uma nova forma de colonialismo verde, é fundamental adotar princípios de justiça socioambiental, que reconheçam e incluam as comunidades afetadas como protagonistas das decisões energéticas. Isso implica:

• Consulta prévia, livre e informada, conforme estabelece a Convenção 169 da OIT.

• Modelos descentralizados e comunitários de geração de energia, que valorizem o conhecimento local e promovam autonomia energética.

• Redistribuição dos benefícios da transição, com reinvestimento em saúde, educação e infraestrutura local.

• Reconhecimento de territórios tradicionais e ecossistemas como sujeitos de direito, e não apenas como “zonas viáveis” para implantação de projetos.



A transição como oportunidade ou ameaça

A transição energética é uma janela histórica para repensar não apenas a matriz energética, mas os próprios fundamentos de desenvolvimento, propriedade e bem-estar. Se conduzida de forma crítica, participativa e territorializada, pode ser uma alavanca de justiça climática. Mas, se mantiver o atual modelo concentrador e tecnocrático, corre o risco de se tornar mais um capítulo da longa história de exclusão socioambiental nas periferias do mundo.

A pergunta que deve nos guiar é: transição para quem — e com quem?




Fontes: 
MAB – Movimento de Atingidos por Barragens e do Instituto Pólis
https://mab.org.br/

GUDYNAS, Eduardo. Extractivisms: Politics, Economy and Ecology. Winnipeg: Fernwood Publishing, 2021.

GUERRERO, Andrés. Geopolítica da transformação energética global e dinâmicas territoriais da transição energética na América do Sul. Sociedade & Natureza, v. 32, n. 2, p. 1–29, 2020.

PACHECO, Tânia; REDE BRASILEIRA DE JUSTIÇA AMBIENTAL. Racismo Ambiental: Vozes, percepções e iniciativas do Brasil. Rio de Janeiro: Fundação Heinrich Böll, 2010.

SASSEN, Saskia. Expulsions: Brutality and Complexity in the Global Economy. Cambridge, MA: Belknap Press, 2014.

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